terça-feira, 2 de agosto de 2011

O Homem, A Doença e O Mito


Aleijadinho foi descrito por Bretas nos seguintes termos:

"Era pardo-escuro, tinha voz forte, a fala arrebatada, e o gênio agastado: a estatura era baixa, o corpo cheio e mal configurado, o rosto e a cabeça redondos, e esta volumosa, o cabelo preto e anelado, o da barba cerrado e basto, a testa larga, o nariz regular e algum tanto pontiagudo, os beiços grossos, as orelhas grandes, e o pescoço curto".
Quase nada ficou registrado sobre sua vida pessoal, a não ser que gostava de se entreter nas "danças vulgares" e comer bem, e que amasiou-se com a mulata Narcisa, tendo com ela um filho. Nada foi dito sobre suas ideias artísticas, sociais ou políticas. Trabalhava sempre sob o regime da encomenda ganhando meia oitava de ouro por dia, mas não acumulou fortuna, antes, diz-se que era descuidado com o dinheiro, sendo roubado várias vezes. Por outro lado, teria feito repetidas doações aos pobres. Manteve três escravos: Maurício, seu ajudante principal com quem dividia os ganhos, e mais Agostinho, auxiliar de entalhes, e Januário, que lhe guiava o burro em que andava. Continuando, Bretas relatou que depois de 1777 o artista começou a exibir sinais de uma misteriosa doença degenerativa, que lhe valeu o apelido de Aleijadinho. O seu corpo foi progressivamente se deformando, o que lhe causava dores contínuas; teria perdido vários dedos das mãos, restando-lhe apenas o indicador e o polegar, e todos dos pés, obrigando-o a andar de joelhos. Para trabalhar tinha de fazer com que lhe amarrassem os cinzéis nos cotos, e na fase mais avançada do mal precisava ser carregado para todos os deslocamentos - sobrevivem recibos de pagamentos de escravos que o levavam para cá e para lá, atestando-o. Também a face foi atingida, emprestando-lhe uma aparência grotesca. De acordo com o relato, Aleijadinho tinha plena consciência de seu aspecto terrível, e por isso desenvolveu um humor perenemente revoltado, colérico e desconfiado, imaginando que mesmo os elogios que recebia por suas realizações artísticas eram escárnios dissimulados. Para ocultar sua deformidade vestia roupas amplas e folgadas, grandes chapéus que lhe escondiam o rosto, e passou a preferir trabalhar à noite, quando não podia ser visto facilmente, e dentro de um espaço fechado por toldos. Nos seus últimos dois anos, quando já não podia trabalhar e passava a maior parte do tempo acamado, Bretas disse que, de acordo com o que soube da nora do artista, um lado de seu corpo ficou coberto de chagas, e ele implorava constantemente que Cristo viesse dar-lhe morte e livrar dessa vida de sofrimento, pousando Seus santos pés sobre o seu corpo miserável.
Diversos diagnósticos têm sido propostos para explicar essa doença, todos conjeturais, que incluem entre outras lepra (alternativa improvável, visto que não foi excluído do convívio social, como ocorria com todos os leprosos), reumatismo deformante, sífilis escorbuto, traumas físicos decorrentes de uma queda, artrite reumatóidepoliomielite e porfiria (doença que produz fotossensibilidade - o que explicaria o fato do artista trabalhar à noite ou protegido por um toldo).

Aleijadinho em Vila Rica, 1898-1904, reconstrução romântica de uma cena imaginária na vida do artista, por Henrique Bernardelli. Reprodução na revista Kósmosde tela posteriormente desaparecida
A construção do mito em torno ao Aleijadinho começou já na biografia pioneira de Bretas, que embora alertando para o fato de que quando "um indivíduo qualquer se torna célebre e admirável em qualquer gênero, há quem, amante do maravilhoso, exagere indefinidamente o que nele há de extraordinário, e das exagerações que se vão sucedendo e acumulando chega-se a compor finalmente uma entidade verdadeiramente ideal", não obstante enaltecia suas realizações contra um meio hostil e uma doença acabrunhante. No início do século XX, interessados em definir um novo sentido de brasilidade, os modernistas o tomaram como um paradigma, um mulato, símbolo do rico sincretismo cultural e étnico brasileiro, que conseguira transformar a herança lusa em algo original, e muita bibliografia foi produzida nesse sentido, criando uma aura em torno dele que foi assumida pelas instâncias oficiais da cultura nacional.
Um dos elementos mais ativos na construção do "mito Aleijadinho" diz respeito à busca implacável de sinais confirmadores de sua originalidade, de sua "unicidade" no panorama da arte brasileira, representando um acontecimento tão especial que transcenderia até mesmo o estilo de sua época. Contudo, essa busca é uma interpretação peculiar do fenômeno estético que nasceu durante o Romantismo, quando se passou identificar fortemente o criador com sua criação, considerando esta uma propriedade exclusiva daquele, e atribuindo à obra a capacidade de exibir reflexos genuínos da personalidade e da alma individual que a produziu. Todo esse corpo de ideias não existia, pelo menos não na importância que adquiriu, durante os períodos anteriores dahistória da arte, que primaram pelo sistema da criação coletiva e muitas vezes anônima. A arte tendia a ser considerada um produto de utilidade pública, os clientes determinavam a abordagem a ser empregada na obra, as histórias e motivos não pertenciam a ninguém, e a voz pessoal do artista não devia prevalecer sobre os cânones formais consagrados e os conceitos coletivos que se procurava transmitir, nem o criador podia em linhas gerais reivindicar propriedade intelectual sobre o que escrevia, esculpia ou pintava. A partir, pois, da ascensão do conceito romântico de originalidade, que ainda hoje é largamente arraigado, se construiu toda a crítica posterior e se passou a ver o artista como um gênio singular, que está intimamente fundido com sua obra e da qual é o único árbitro e dono, assumindo a criação um perfil autobiográfico. Até nos dias de hoje parte da crítica tende a projetar uma visão moderna sobre processos mais antigos ocorridos dentro de um contexto em tudo distinto, distorcendo as interpretações e chegando a conclusões enganosas, um problema que afeta diretamente o estudo da vida e obra do Aleijadinho e ainda mais profundamente quando se constata a importância simbólica que ele adquiriu para os brasileiros, uma importância que em boa parte foi erigida a partir dessa mesma distorção analítica que está eivada de contradições estéticas e históricas fundamentais. Não é possível, certamente, ignorar diferenças de capacidade artística ou de estilos individuais mesmo entre artistas pré-românticos como ele, nem se ignora o evidente aparecimento de notas originais e transformadoras na linha do tempo, mas é preciso lembrar que antes do que ser um produto de uma suposta geração espontânea, um gênio nascido do nada e inteiramente original, Aleijadinho pertenceu a uma linhagem, teve antecessores e inspiradores, e foi fruto de um meio cultural que determinava em larga medida como a arte da sua época deveria ser criada, sem que o artista - um conceito que tampouco existia como ele é entendido hoje - tivesse um papel especialmente ativo nessa determinação.
Também sua doença entrou como elemento importante neste quadro magnificado. Como sintetizou Gomes Junior,
"No Brasil o Aleijadinho não teria escapado a essa representação coletiva que circunda a figura do artista. O relato da parteira Joana Lopes, uma mulher do povo que serviu de base tanto para as histórias que corriam de boca em boca quanto para o trabalho de biógrafos e historiadores, fez de Antônio Francisco Lisboa o protótipo do gênio amaldiçoado pela doença. Obscurece-se sua formação para fixar a ideia do gênio inculto; realça-se sua condição de mulato para dar relevo às suas realizações no seio de uma comunidade escravocrata; apaga-se por completo a natureza coletiva do trabalho artístico para que o indivíduo assuma uma feição demiúrgica; amplia-se o efeito da doença para que fique nítido o esforço sobre-humano de sua obra e para que o belo ganhe realce na moldura da lepra." 
O pesquisador chama a atenção ainda para a evidência documental de recibos assinados em 1796, onde sua caligrafia ainda é firme e desembaraçada, fato inexplicável se aceitarmos o que disse Bretas ou os relatos de viajantes do século XIX, como John Luccock, Friedrich von Woech, Francis de Castelnau e outros, certamente repetindo o que proclamava a voz popular, que diziam ele ter perdido não só dedos, mas até as mãos. Chartier, Hansen, Grammont e outros vêm ecoando os mesmos argumentos de Gomes Junior, e Barretto acrescentou, ao que se disse acima, que a figura de Aleijadinho é atualmente um chamariz para o turismo de Ouro Preto em tal medida que sua doença, representada nos livros, é "comercializada" em alguns pontos turísticos da cidade. Em meio a esta teia de construções biográficas duvidosas mas largamente consagradas pela tradição, diversos estudiosos têm tentado separar fato de lenda, num esforço que iniciou quase ao mesmo tempo em que se erguia o edifício mítico em seu redor, sendo especialmente notáveis os escritos pioneiros de José Mariano Filho e Roger Bastide sobre este tópico, mais tarde secundados por diversos outros como os dos autores antes citados.

Retrato imaginário de Aleijadinho, por Bernardelli


Iconografia

Não há notícia de que Aleijadinho tenha sido retratado em vida, mas no início do século XX foi descoberto, na casa de ex-votos do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, um pequeno retrato de um mulato bem vestido, com as mãos ocultas. A obra foi então vendida em1916 ao comerciante carioca Baerlein como sendo um retrato do artista, e depois de ir parar num antiquário, foi comprada por Guilherme Guinle, quando a esta altura se atribuiu a autoria a Mestre Ataíde. Em 1941 Guinle doou o retrato ao Arquivo Público Mineiro, onde em 1956 foi redescoberto pelo historiador Miguel Chiquiloff, que deu início a uma pesquisa de quase vinte anos para provar sua autenticidade. A conclusão de Chiquiloff foi que a imagem de fato representa Aleijadinho, mas sua autoria foi atribuída a um obscuro pintor, Euclásio Penna Ventura.
Depois disso acendeu-se um grande debate na imprensa, e a opinião pública mineira foi induzida a mostrar-se favorável ao reconhecimento oficial da obra como um retrato autêntico do afamado mestre; a proposta foi inclusive objeto de um projeto de lei que deu entrada na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, mas de acordo com um parecer do Conselho Estadual de Cultura, que eximiu-se de julgar um assunto que lhe pareceu fora de sua alçada, o projeto foi vetado pelo governador. Contudo, Assembleia derrubou o veto governamental e aprovou a Lei nº5.984, de 12 de setembro de 1972, reconhecendo o retrato como a efígie oficial e única de Antônio Francisco Lisboa. É a imagem que ilustra a abertura deste artigo. Alguns artistas brasileiros também ofereceram versões conjeturais de sua aparência, entre eles Belmonte e Henrique Bernardelli.

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